Crônica - O ouvinte



"- Deco, você tá me ouvindo?"

Ele acenava que sim com a cabeça, ela ficava enfurecida e continuava:

"- Você nunca me ouve!"

"- Eu ouço sim. Só que não quer dizer que eu concorde sempre com você, Teca..."

"- Doido!"

E eles caiam na risada. A amizade deles era assim. Gostosa. Na vida dele parecia que a gravidade não era obrigatória: tudo parecia mais leve. Já a vida dela tinha que ser controladinha, rotineira, como a vida da maioria das pessoas que aceitam que sejam assim lá na casa dos vinte e poucos anos. Ele era mais velho, mas parecia mais novo, mais moleque. Ela era mais nova, mas vivia como se tivesse espírito de senhora.

“- Teca, hoje a noite vamos sair pra dançar, tá?”

“- Ah, Deco, ando meio cansada. Não estou muito bem hoje, passei o dia fazendo faxina aqui em casa...”

“- Passo as 21 horas, tá bom?”

“- Melhor não, tô quebrada... Deixa para outro dia...”

“- Coloca aquela sapatilha que eu te dei no fim do ano! Hoje vamos dançar muito!”

“- Deco, você tá me ouvindo?”

“- Hahaha!”

“- Você nunca me ouve!”

“- Claro que ouço. 21 horas fica pronta, tá bom? Beijos!”

“- Doido! Tá bom!”

E saíram como todas as outras vezes que ele marcava. No final, ela se divertia mais do que se ficasse em casa. Afinal, o que ela faria? Assistiria televisão? Leria dois capítulos daquele livro que ela começou há um mês? Navegaria nas redes sociais? Devagarinho, ela foi entendendo que a vida não precisava ter aquele peso todo que as obrigações impunham e sentia falta quando Deco não dava sinal de vida. Aquela energia que ele carregava, aquele jeito de não ouvir ela, já fazia parte da sua vida.

"- Teca, cineminha hoje, tá bom? E depois a gente sai para tomar um lanche..."

"- Ai, Deco... Tá, você não vai me ouvir mesmo... Pode ser às 19 horas?"

"- Perfeito!"

"- Que filme a gente vai ver?"

"- O que for mais legal e estiver em cartaz!"

"- Tá... tudo bem!"

Escolheram um filme de comédia romântica, que estava em cartaz há algum tempo e uma amiga tinha recomendado para Teca. O filme deixou aquela saída dos dois com cara de encontro. Teca durante o filme, recostou no ombro de Deco. Alguns minutos depois, Deco, como que por instinto, abraçou Teca, que também o abraçou. No final do filme, com aquele clima de romantismo no ar e ainda com o escurinho do cinema, Deco arriscou um beijo em Teca, que por cinco segundos correspondeu, até ela parar.

"- Deco, eu não posso fazer isso..."

Ele roubou um selinho.

"- Deco... Vai estragar a nossa amizade..."

E Deco deu um selinho um pouco mais demorado.

"- Deco... por favor, pára, vai?

Deco respondeu com um selinho e uma mordida nos lábios de Teca.

"- Você tá me ouvindo?"

Deco sorriu e enquanto pegou no queixo de Teca.

"- Sim, Teca, estou ouvindo, mas não significa que eu precise concordar com você..."

E se beijaram cinematograficamente. Concordando ou não, uma coisa é certa: Deco ouvia muito bem Teca.

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