Crônica - Brigas


Antes mesmo de abrir os olhos, senti meu coração murchinho. Estava zonzo, sonolento. Não conseguia entender o motivo daquela dorzinha. Apenas sentia um aperto. Provavelmente um sonho ruim, pensei. Tentei descobrir enquanto virava de barriga pra cima com toda a lentidão do mundo. Então lembrei. A gente brigou ontem. Eu não queria, você não queria. Quem quer brigar?

Quando tinha uns 12, 13 anos, briguei feio com minha mãe. Eu escutava o jogo do Santos no rádio quando meu irmão corintiano chegou perto e tirou o fio da tomada. Fui lá e coloquei de volta. Ele insistentemente desligava o rádio. Virou uma pancadaria, digna do Pacaembu. Minha mãe foi ver o que estava acontecendo e não pensou duas vezes. Confiscou a prova do crime. Fiquei sem saber como o jogo havia terminado e parei de falar com minha mãe.

Sentia raiva por ela nem mesmo ter procurado saber o que estava acontecendo. Meu irmão, que estava errado, conseguiu exatamente o que queria. Fiquei uma semana sem falar com ela. Chorava de tristeza, mas me recusava a procurá-la. Será que ela não percebia?

Não. A verdade é essa. Ela não sabia que o jogo do Santos tinha tanta importância pra mim. E é disso que brigas são feitas. Quem se sente injustiçado espera desculpas e quem, teoricamente foi injusto, não vê motivos pra se desculpar por não ter idéia da dimensão do estrago.

Meu pai pedia pra eu falar com ela. Dizia que ela chorava muito. Eu também sofria. Apesar dos anos, sinto a dor ainda. Sabia do sofrimento dela, ela sabia do meu. Sabia que ela, assim como eu, queria me abraçar e esquecer tudo. Mas ninguém movia uma peça. E ambos tinham suas razões.

De volta à minha cama, onde eu despertava devagar, sentia esse mesmo gosto. Um ranço, um rastro amargo. Uma ressaca. Pensava quantas vezes mais teria que passar por uma briga vaga. Medir sentimentos, sendo que eles são imensuráveis. Exigir desculpas, quando o outro não vê necessidade de pedir. Entender que não se trata de achar culpados, mas de dizer como se gosta ou não das coisas.

Levantei e fui até minha mãe. Perguntei se ela lembrava da briga de anos atrás. Nem precisei dar mais detalhes.

- Lembro.
- Quem foi que quebrou o silêncio?
- Fui eu.
- Mas mãe, eu tinha razão.
- Não vamos falar disso. Certas coisas não se discutem.

Mãe sabe o que diz. A minha então sabe tudo. Ouvi o que precisava para encarar a ressaca que me acompanharia durante uns dias, até tudo voltar ao normal. Da próxima vez quero me lembrar disso. Discutir o que não se pode mudar é dolorido, inútil, desgastante. Algumas feridas não saram. Depois de abertas, só o tempo ajuda a ignorá-las.

Mesmo mais novo, fiz uma escolha que deveria repetir mais vezes. Ficar em silêncio.

1 Comentários

Unknown disse…
Parece que não mas são desses fatos fortuitos que se tiram conclusões ou lições de vida. A importância da memória esta aí, de poder resgatar um espaço imodificável no tempo e na sua existência, fazendo deste instrumento para modificar o que se vive.